Vocacionados Para a Vida Comum



Jesus deve ser o Senhor de toda minha vida ou ele não será Senhor de nada. Minha vida inteira deve ser sua. Isso significa que, como cristão, sou graciosamente chamado por Deus a entregar todas as esferas da minha vida à Ele, e a glorificá-lo em cada uma delas.

Cada um de nós, individualmente, recebemos uma vocação do Senhor para determinada área; viver na condição que o Senhor nos designou e andar de acordo com o chamado de Deus faz parte do princípio geral que atinge todas as esferas da nossa vida. Paulo entendeu isso e nos disse: Entretanto, cada um continue vivendo na condição que o Senhor lhe designou e de acordo com o chamado de Deus.” (1 Coríntios 7:17).
A expressão chamado de Deus, que concluí o versículo, enfatiza o fato de que a presença de Deus torna qualquer vocação, um trabalho com Deus. Nesse sentido objetivo, cada cristão está ocupado em um trabalho cristão de tempo integral.

Floyd McClung em seu livro "Discipulado Básico" (2003) nos conta uma história que aconteceu em seu ministério.
"Certo pastor de uma igreja no meio oeste dos Estados Unidos relatou o seguinte problema à um de nossos líderes de missões: - Temos um jovem casal que retornou de um campo missionário em um país estrangeiro para levantar fundos para o seu trabalho no campo. Ambos propuseram que, se nossa igreja estivesse disposta a lhes dar o suporte financeiro, eles se comprometeriam a auxiliar no trabalho da igreja durante um ano. Concordamos com a proposta. Entretanto, durante esses seis meses de estadia conosco, nós os vimos apenas uma vez por semana - no domingo de manhã. Eles não se oferecem para assumir uma classe na Escola Dominical, ajudar no trabalho de limpeza ou auxiliar com o grupo de jovens. Se essa é a ideia que ambos têm de serviço, nós nos sentimos usados e não cremos que eles possuam as qualidades necessárias para o trabalho missionário. Não desejamos financiá-los pois eles não nos parecem demonstrar as credenciais necessárias para serem enviados como missionários de nossa organização."[1]
Ele, com certeza, estava lidando com algo relacionado a vocação.  A ideia que nos parece central é: como esse jovem casal pode ser vocacionado para missões? Se eles não conseguiram servir a Deus na situação em que se encontravam, na igreja local, o que os faz pensar que seriam melhores numa situação ou num local diferente?

João Calvino (1509-1564) certa vez nos disse que o mundo é um "esplendíssimo teatro"[2] da glória de Deus. Como o grande arquiteto do universo, Deus revela sua grandeza e "de tal modo se há revelado em toda a obra da criação do mundo, e a cada dia meridianamente se manifesta"[3], desde o nascer de um belo sol, que nos aquece, até a mínima forma das unhas dos dedos do pé de uma criança. Nada em nossa vida é ocasional. Na verdade, "os fatos que se consideram eventos casuais" na vida humana são, como Calvino nos diz, "testemunhos da celeste providência, em especial, na verdade, de paterna clemência"[4].

Devemos concordar em dizer que Deus não está alheio a nossa vida corriqueira - aliás, dizer que nossas vidas são corriqueiras não é o mesmo que dizer que são medíocres. O puritano William Perkins (1558-1602), tratando sobre vocação, nos diz:
"Uma vocação ou chamado é um certo tipo de vida, ordenado e imposto ao homem por Deus, para o bem comum [...] Toda pessoa de todo grau, estado, sexo ou condição, sem exceção, deve ter algum chamado pessoal e particular em que caminhar." [5]
A doutrina é simples: uma pessoa vocacionada para trabalhar, quando exerce sua função, trabalha para Deus! Dessa perspectiva, o trabalho deixa de ser impessoal. O trabalho é um meio pelo qual uma pessoa vive sua relação pessoal com Deus. Sendo assim, sei que muitos podem ter algum tipo de problema em descobrir à qual vocação foi chamado (como nosso casal de irmãos do inicio do post). A metodologia puritana pode nos ajudar mais uma vez nesse sentido, visto que eles não tornavam o processo místico, mas racional. 

Eles concordavam que raramente Deus chama as pessoas de maneira direta. Eles preferiam confiar em coisas como “os dotes e inclinações internos”, “circunstâncias externas que podem levar a um curso de vida em vez de outro”, o conselho de “pais, guardiões e, em alguns casos, magistrados”, e “a natureza, a educação e os dons adquiridos”[6]. Eles também criam que se as pessoas estivessem no chamado certo, Deus as equiparia para realizar seu trabalho: “Quando Deus convoca para uma posição, ele dá alguns dons para aquela posição”.[7]

Sobre isso, o puritano Milton, que desde a infância teve um forte chamado para ser poeta, escreveu que “a natureza de cada pessoa deveria ser especialmente observada e não desviada noutra direção, porque Deus não pretende todas as pessoas para uma só coisa, mas cada uma para seu próprio trabalho”.[8]

Sim. A maneira mais prática pela qual podemos descobrir nossas vocações futuras é observar quais são nossas responsabilidades atuais. Se é verdade que Deus nos dota com inclinações internas e nos coloca em circunstâncias externas onde temos que exercer nossos dons, então o que fazemos hoje é um meio de descobrirmos o que faremos amanhã. Que tipos de vocação você crê que Deus têm o chamado? E quais são suas responsabilidades hoje? Como você acha que a fidelidade nessas responsabilidades pode prepará-lo e amadurecê-lo para sua futura vocação? Muitas vezes corremos o perigo de almejar grandes coisas e esquecer-nos de que Deus atua em nossa vida comum para nos contentarmos nEle. 

Lembre-se: você não é a estrela de seu próprio filme; essa vida não é sobre como você pode ter um grande ministério; é sobre como você pode glorificar a Deus com a vocação que Ele te deu - mesmo sendo ela a de cuidar de seu marido e filhos. Nem todos de nós fomos chamados para sermos grandes mestres ou grandes escritores de livros, mas todos fomos chamados para vivermos vidas comuns. Perkins declarou que podemos servir a Deus “em qualquer espécie de chamado, embora seja apenas varrer a casa ou guardar ovelhas”[9]. Nathaniel Mather disse que a graça de Deus “espiritualiza toda ação[10]; mesmo as tarefas mais simples, como “um homem amar sua mulher e filhos”, tornam-se “atos graciosos”, e o “seu comer e beber são atos de obediência e, portanto, acham-se em grande conta aos olhos de Deus”[11]. Não desperdice sua vida e seus dons tendo grandes ambições de ser visto ou de marcar a história. No fim das contas, sua história será lembrada como um grande vencedor, que estava ao lado do Rei, ou de um grande perdedor, que tentou ser o que não era. Guardemos em nosso coração que "o principal fim das nossas vidas é servir a Deus no serviço aos homens e nos afazeres de nossos chamados"[12]. Devemos descansar no fato de que, mesmo em "todos os nossos cuidados, labutas, chateações e outras cargas, não será pequeno alívio saber que todos estes estão sob a superintendência de Deus"[13].

Se você se sente chamado para ser missionário ou pastor — ou outros tipos de ministérios eclesiásticos —, mas não consegue servir a Deus na situação em que se encontra, na igreja local, o que os faz pensar que você será melhor numa situação ou num local diferente? A nossa tendência é sempre evitar o rotineiro e optar pelo espetacular, mas essa não é a maneira de Deus agir.

Não há misticismo ou sentimentalismo para descobrirmos a vocação que Deus nos deu. As situações que você vive hoje, em sua vida comum, fazem parte da providência de Deus para te amadurecer pra vocação que Ele te chamou. Você evangeliza e discípula pessoas próximas de você, como membros da sua família ou amigos? Você pastoreia e lidera seu lar e seus amigos? Você serve e auxilia seus parentes e amigos? Se isso não acontece hoje, não acontecerá em um ambiente diferente.
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1. Floyd McClung. Senhorio: Discipulado Básico, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 19.
2. João Calvino. Institutas, 1.6.2
3. Ibid., 1.5.1
4. Ibid., 1.5.8.
5. Extraído de: Leland Ryken. Santos no Mundo, p. 65
6. Ibid., p. 68
7. Ibid.
8. Ibid.
9. Ibid., p. 63
10. Ibid.
11. Ibid.
12. Ibid., p. 71

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